Filhotes de Cães Bully e Gatos Gigantes - Sobre cães, raças e preconceito


Sobre cães, raças e preconceito

Setembro 25, 2009 por Gerardo Furtado

Um colega meu, que asseguro ser uma das mais promissoras mentes que conheço, me fez recentemente uma pergunta particularmente desconcertante quando se trata do conceito de espécie, e em particular ao uso do que chamamos de Conceito Biológico de Espécie (CBE), de Ernst Mayr: constituem as diferentes raças de cães uma só espécie, ou devemos considerá-las como espécies distintas?

Como todo biólogo que se preze sabe, esse é apenas um dos problemas que o CBE enfrenta. Coincidentemente, eu havia lido, na mesma semana, um artigo de Steve Mirsky na Scientific American, intitulado “Are dog breeds actually different species?”. Para quem não conhece, Mirsky é um comediante, e escrevia a extinta coluna “antigravity”; porém, apesar das galhofas, ele levanta questionamentos sérios. Nesse artigo em particular ele finda defendendo a opinião de que as diferentes raças deveriam, sim, ser consideradas espécies distintas, e mais uma vez baseando-se no critério da falta de cruzamentos entre determinadas raças.

Minha opinião é oposta: não se pode dizer que as diferentes raças de cães constituam espécies distintas com base nos cruzamentos. Como todos sabem, inseminações podem ser feitas, promovendo a mixagem de qualquer raça com qualquer outra raça. Além disso, quando se fala que o chiuaua não cruza com o mastiff, esquece-se que estamos aqui lidando com exemplos extremos: o chiuaua pode cruzar com o poodle, o poodle pode cruzar com o labrador, e o labrador pode cruzar com o mastiff. Em outras palavras, há (ou pode haver) fluxo gênico entre o chiuaua e o mastiff.

Atualmente, há uma tendência entre os biólogos evolucionistas, baseados em dados genéticos e em outras informações da biologia molecular, de considerar não apenas todas as raças de cães como uma só espécie, mas todos esses cães domésticos como variedades de Canis lupus, eliminando-se assim o status de espécie do Canis familiaris. Independentemente da posição preferida, e esse é um debate interessante para se discutir certos conceitos elementares da biologia evolutiva, o que me interessa neste pequeno ensaio é outro aspecto da questão “raças ou espécies”, geralmente relegada ao segundo plano: qual o significado biológico do termo raça? O que é uma raça, se é que existe tal entidade biológica?
Um chiuaua corajoso faz uma proposta a uma mastif... (da Scientific American de junho)

Um chiuaua corajoso e nada modesto faz sua proposta amorosa a uma mastiff... (fonte: Scientific American de junho)

Há um texto muito bom de Stephen Gould, bem didático e conciso, intitulado “Why We Should Not Name Human Races – A Biological View” (do livro ever since Darwin), em que ele argumenta que não há sentido biológico em atribuirmos valor taxonômico para raças ou para subespécies. Muitos argumentam que as raças, incluindo-se aí as raças humanas, são evidentes. “o que é evidente”, responde Gould, “são as variações geográficas”. O que temos aqui são histórias evolutivas distintas, levando a certas variações em padrões genéticos. Denominar as raças seria não só contraproducente como também enganador, pois o fluxo genético pode rapidamente misturar, distribuir ou alterar esses padrões genéticos. Devido às suas histórias evolutivas, os ameríndios têm certas características distintas dos africanos, ou dos europeus, dou dos australóides. Certos padrões genéticos distinguem um ameríndio de um africano ou de um europeu, de forma que podemos, com certa precisão, identificar a geografia de origem de um material biológico humano; isso, contudo, não significa dizer que o ameríndio seja uma raça, que o africano seja outra raça, ou que o europeu seja uma terceira. Essas variações no padrão só existem porque esses grupos geográficos ficaram um bom tempo sem fluxo gênico: o que dizer do Brasil, onde esses três grupos geográficos se encontraram? Serão os mestiços uma quarta, quinta ou sexta raça? E os mestiços dos mestiços?

Pode-se pensar no poodle ou no pastor alemão como variedades. Considerá-los como raças, além dos prejuízos já discutidos em se tentar estabelecer na biologia o conceito de raça, nos levaria a crer que cada raça formaria um grupo monofilético, onde o ancestral comum daquelas entidades biológicas é exclusivo. Ora, mas esse é justamente o caso! Qual seria, então, o problema em se pensar nas variedades de cães domésticos como raças?

O problema, e este é o ponto central desta pequena nota, surge quando se considera que os cães de raça, ou seja, o agrupamento de todas as raças, constituem um grupo monofilético. Do outro lado teríamos os cães sem raça, os SRD (sem raça definida). Em primeiro lugar, se raças não existem, nenhum cão teria raça! Isso é particularmente uma ofensa para aqueles que têm cão (“de raça”…) não exatamente por gostar da companhia desta espécie animal, mas sim pela arrogância de ostentar uma etiqueta, uma marca, como um carro ou uma roupa. Em segundo lugar, dizer que tal cão não tem raça nos faz crer que raça é uma característica, um atributo, uma propriedade, de forma que alguns cães a possuem, enquanto outros não.

Os cães SRD são tão diferentes geneticamente entre si quanto os cães de raça. Esse último enunciado com certeza causaria polêmica, principalmente entre os veterinários, e portanto convém que eu me explique mais detalhadamente: tomando uma raça, e.g. border collie, podemos descrever suas características distintivas e supor que, tendo uma origem comum, apresentam grande semelhança genética. O mesmo vale, seguindo o raciocínio, para os schnauzers. Contudo, se compararmos um border collie com um schnauzer, encontraremos bastantes diferenças genéticas. Numa ilha ou numa comunidade isolada, os cães de rua podem formar um grupo genético tão limitado, com endocruzamentos tão freqüentes, que suas diferenças genéticas são tão pequenas como as de uma determinada raça. Ainda seguindo esse raciocínio, as diferenças genéticas entre um border collie e um schnauzer podem ser quantitativamente semelhantes às diferenças entre um border collie e um determinado SRD. E, ainda no mesmo raciocínio, um SRD da Ásia e um SRD do Brasil podem (e certamente serão) apresentar grandes diferenças genéticas.

Ouço muito, na cidade onde moro: “vacinei meus cães de raça, mas o meu cão fulano-de-tal, pé-duro (SRD), não precisa ser vacinado”… Por quê? As pessoas leigas, e até mesmo muitos veterinários, têm a impressão de que cães SRD (que não é um grupo monofilético!) são mais resistentes imunologicamente que cães de raça (novamente: não é um grupo monofilético!). O que ocorre aqui é outra coisa: cães SRD, submetidos à “selva” das ruas, são selecionados por sua capacidade de sobrevivência, diferentemente da seleção, cujos critérios são definidos pelo criador, à qual são submetidos os cães de raça. Poderíamos afirmar, isso sim, que os cães de rua de dada localidade, por terem sido sistematicamente expostos à virose tal ou à helmintose tal, têm mais resistência a essas viroses ou helmintoses que os cães de raça, não porque esses últimos sejam de raça, e sim porque não tiveram tal exposição.

Para quem gosta de cachorro: cão é cão, não importa a variedade! Paremos de olhar as etiquetas… Há comportamentos particulares para dada variedade, isso é bem conhecido, mas há um enorme grupo de comportamentos que todos os cães compartilham. Atualmente convivo com duas cadelas de raça, pois me foram dadas de presente… Mas, tão logo tenha chance, quero adotar um SRD. A maioria dos que já adotaram dizem que é uma experiência da qual eles não se arrependem.

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